sábado, 17 de novembro de 2012

Esta palavra descentralização...


 Para além da linguagem já criada, codificada nos dicionários e recriada na literatura, as vagas do tempo trazem à tona do consciente falado certas palavras, ainda jovens de conteúdo, que vêm substituir outras, sorvidas e mastigadas pelo uso e desuso na retórica ideológica.
E o discurso político para ser de novo ouvido e acreditado apropria-se assim gulosamente de novos termos que irá usar indiscriminadamente, enfaticamente, como um fato novo providencial, sem ter em conta o que de facto significam. Este uso destorcido das palavras, sobretudo das mais ricas e fecundas no campo da liberdade política, acaba por as atrofiar e murchar e, o que é mais grave, atrofiar e murchar o próprio conceito que traziam consigo.
Com tal insistência isto acontece que quase se acredita significar tal uso não tanto o querer dizer o que elas dizem mas exactamente gastá-las no abuso e evitar assim que falem…
É sempre instrutivo seguir a vida atribulada de certas palavras e do conceito que deveriam exprimir. É o próprio uso da língua que conduz a escorregamentos semânticos. É frequente o fenómeno. No entanto, quando ele se dá na linguagem política, que deveria ser, por sua natureza, não errática nem poética mas tanto quanto possível exacta e precisa, a gente treme…
Na política se resumem as leis pelas quais os homens se regem. Qualquer flutuação de sentido nas palavras usadas pode levar a resultados imprevisíveis e catastróficos. Quando vem à baila, por exemplo, a palavra democracia, tão debilitada que precisa de muletas, uma burguesa e outra popular, verificamos que toda a confusão política, as arbitrariedades, os atropelos, os abusos e as tiranias podem encontrar a sua via para se instalarem, através do mau uso das palavras.
Uma das palavras novas lançadas no mercado político do nosso país, na era recente, foi a “descentralização”. Todo o país riu quando o I Governo Constitucional disse estar praticando uma política de descentralização só porque foi um dia reunir-se no Porto.
….
Em Portugal não existe poder local. Desenganem-se os ingénuos. Só há poder partidário. …Quem manda é o Governo.
Mas o som mágico da palavra “descentralização” ainda não se gastou.
….
Para já o poder das autarquias é partidário, vive de subsídios do poder central e está amarrado às decisões do mesmo poder.
Porque esse o plano global é permitido com tal força, com tal vontade, com tal exactidão que qualquer fissura, a mais ténue veleidade de liberdade local, desfeará o edifício. Ele é uma construção total. Não admite construçõezinhas à vontade do habitante… Essa liberdade já não se usa. Hoje a tecnocracia e o socialismo, de mãos dadas, vão-nos dar um país muito arrumadinho…
Entretanto continuaremos no engodo e no engano de “descentralização”. E esta palavra tão promissora de liberdade autêntica continuará a ser desvirtuada. Já o é de tal modo no Programa do II Governo que nele se usa quase indistintamente a descentralização e desconcentração… Como se fossem exactamente a mesma coisa.
E a memória colectiva da nossa antiga liberdade municipal acabará por se desvanecer pois a própria palavra que a definia se vai extinguindo por uso indevido. Daqui a pouco tempo estaremos todos fartos de “descentralização”. E com inteira razão. O que não saberemos mais chamar pelo nome próprio aquilo que ela significava. E isso será uma perda irreparável.

Teresa Maria Martins de Carvalho in Jornal Novo 12/7/78 (incluído in D. Sebastião e Eu – 1982)

Sem comentários:

Enviar um comentário