…Neste estado
de autonomia, a nossa língua fez a jornada dos mares, senhoreou a África e os
grandes empórios do Oriente, e viveu com o esplendor dos hinos, com as dores
dos naufrágios e as lágrimas da saüdade, a vida de triunfo e de perdição da
nossa epopeia marítima. E por tôda a rota da sua peregrinação, dezenas de
milhões de bocas a repetem ainda hoje, orgulhosamente, nas mesmas sílabas e
palavras que dominaram as vozes dos elementos, erguendo-lhe perene glorificação
os falares crioulos do Atlântico, os dialectos vivos do Mar das Índias, da
China e da Oceânia.
…Como já
notei, não poderiam sem violência nivelar-se ao calão, algumas formas de
linguagem que viveram ou vivem ao lado da nossa língua e que, pela sua
incerteza e mobilidade, não constituem dialectos.
São tatuagens,
assim me apraz chamar-lhes, são esmaltes exóticos outras vezes, essas
expressões em que ressoam marimbas e gongues de Angola, ou de onde se evolam,
ao sabor da Crónica, perfumes de tamarindos e champaca, lânguidos cantares e
cintilações, desde os rios de África até às paragens do Oriente, pelo Malabar e
Ceilão, por Malaca e Ilhas de Sonda, a bordo de lorchas e coracóras.
…Neste
congresso permanente de raças, moiriscos, ciganos, negros da Guiné e negros
cafres, peles-vermelhas, índios, chinas, javaneses, a nossa língua matizou-se
de exótico, entrou nos pagodes sagrados e foi soada nas galés de piratas e nos
balcões de comércio de todos os empórios.
…Portugal
amado, sem língua portuguesa respeitada na sua pureza e obedecida na sua
gramática, é um paradoxo lastimoso que só vive o destino efémero das palmas e
dos banquetes.
A nossa língua
é a obra-prima do espírito nacional, a criação para que todos os Portugueses
uniram as almas durante séculos, harmònicamente, sem o desígnio, aliás
impossível, de para isso entrarem em acôrdo…
…As nações
pequenas vêem-se cada vez mais condenadas pela ameaça dos grandes armamentos e
das expansões do imperialismo económico, ao serem levadas pela mão das
Potências, como pupilos dóceis e frágeis, às discussões da Paz e às fogueiras
da Guerra. O Preste João, no seu palácio lendário de marfim e oiro, ainda vive
em símbolo e lá espera que todos vamos em sua demanda. Não esqueçamos, entre
outras, essa aliança poderosa e invencível, a aliança fiel de Portugal com os
Portugueses dispersos pela vastidão da Terra, com todos os povos e gentes que
falam a nossa língua.
…Aos nossos filhos
deixemos, como melhor legado, depois dos ditames da moral e da honra, a língua
portuguesa, viva, orgulhosa e incorrupta, para que a sua música não se dissolva
no silêncio nebuloso dos séculos, mas seja eterna a sua voz de pensamento, a
sua consolação de caridade, o seu frémito de paixão.
Estudai,
estudemos todos a nossa língua com amor: nela se encorpora e vive a alma da
Nação. !E por sôbre as facções e ódios que nos dividem e enfraquecem, acima de
interêsses e rivalidades que nos lançam uns contra os outros, falar bem e
língua materna é ainda a melhor forma de cada um se afirmar português de
Portugal!
Hipólito
Raposo, 1928 Tatuagens da nossa língua in Aula Régia (antes do acordo de 1945...)
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