Relanceando os olhos para a esquina do Planeta, com admiração sempre renovada, podemos observar o que se vai passando na célebre República da Ilusitânia, criação maravilhosa da nova idade do ferro e oiro.
No mapa da geografia humana, fica situada à maior latitude do Arbítrio Pessoal e na maior longitude do meridiano da Razão Política, tendo sido revelada das altas nuvens à terra inteira pelos pregões mercenários da glória e pela voz metálica da radiodifusão, através do etéreo espaço.
Nesse estranho país dos paradoxos e antíteses, por misteriosa feitiçaria das cifras e dos cifrões, da adição de parcelas negativas resultam somas ou totais positivos; os naturais veêm e sentem quadros de inferno onde aos forasteiros se revelam miragens de paraíso; uns vivem a sonhar ventura, outros vão tropeçando em duras pedras ou caindo em ciladas de perdição.
Mas se algum curioso da verdade quisesse descer ao plano das realidades, não as conseguiria tocar: elas fugir-lhe-iam, à semelhança do arco-íris que só de longe se contempla e subitamente desaparece, quando alguém avança ao seu encontro.
No mesmo signo de contradição, para corresponder à exigência do momento histórico em que possam reclamar-se extremas resoluções de sacrifício, por lá se descobre a vegetar uma sociedade de gente de nova feição que pela prática abusiva das curvas, deixou perder a prerrogativa da verticalidade da espinha com que o Criador distinguiu os humanos, contentando-se com a comodidade e o viscoso proveito de moluscos.
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Pela Ética Social que nessa distante república vigora, a falta de recato e vergonha aceita-se complacentemente entre os fiéis de Plutão, revelando-se por frequentes audácias de banksters de novo estilo, ou por indústria de ladravazes em metódicos desfalques que por indulgente eufemismo, se chamam desvios.
A tais crimes, nem os comentários das estações oficiosas, nem as gazetas e tribunais já ousam chamar roubo ou latrocínio, conforme exigiriam a correcção e a legítima propriedade da velha língua.
Nessa República que o Divino Grego não pôde sonhar, tudo decorre em regime de ficção cenográfica, com a jovial concórdia de uma numerosa câmara que, por concerto prévio, vive na bocejante paz da unanimidade, sem ninguém ousar em voz alta lembrar-se de que em todos os tempos e lugares, sempre as assembleias existiram com a pressuposição da justificada divergência de pareceres.
Se não fosse essa lei da servil obediência ao paradoxo, a concordância por dogma político, importando a infalibidade do Poder na Ilusitânia, justificaria também, por veredicto da consciência pública e providência de boa economia de tempo e dinheiro, a moralizadora supressão de um órgão sem a função que lhe pertence.
É assim que os erros se moderam, tudo se facilita e perdoa nos repetidos e lautos banquetes de Baltazar, em que os densos vapores das salas a ninguém permitem reler as palavras fatídicas.
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Hipólito Raposo in Amar e Servir – Livraria Civilização, 1940
"Nessa República que o Divino Grego não pôde sonhar, tudo decorre em regime de ficção cenográfica, com a jovial concórdia de uma numerosa câmara que, por concerto prévio, vive na bocejante paz da unanimidade, sem ninguém ousar em voz alta lembrar-se de que em todos os tempos e lugares, sempre as assembleias existiram com a pressuposição da justificada divergência de pareceres." Simplesmente, BRILHANTE
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