Para além da linguagem já criada,
codificada nos dicionários e recriada na literatura, as vagas do tempo trazem à
tona do consciente falado certas palavras, ainda jovens de conteúdo, que vêm
substituir outras, sorvidas e mastigadas pelo uso e desuso na retórica
ideológica.
E o discurso político para ser de novo ouvido e acreditado
apropria-se assim gulosamente de novos termos que irá usar indiscriminadamente,
enfaticamente, como um fato novo providencial, sem ter em conta o que de facto
significam. Este uso destorcido das palavras, sobretudo das mais ricas e
fecundas no campo da liberdade política, acaba por as atrofiar e murchar e, o
que é mais grave, atrofiar e murchar o próprio conceito que traziam consigo.
Com tal insistência isto acontece que
quase se acredita significar tal uso não tanto o querer dizer o que elas dizem
mas exactamente gastá-las no abuso e evitar assim que falem…
É sempre instrutivo seguir a vida
atribulada de certas palavras e do conceito que deveriam exprimir. É o próprio
uso da língua que conduz a escorregamentos semânticos. É frequente o fenómeno.
No entanto, quando ele se dá na linguagem política, que deveria ser, por sua
natureza, não errática nem poética mas tanto quanto possível exacta e precisa,
a gente treme…
Na política se resumem as leis pelas quais
os homens se regem. Qualquer flutuação de sentido nas palavras usadas pode
levar a resultados imprevisíveis e catastróficos. Quando vem à baila, por
exemplo, a palavra democracia, tão debilitada que precisa de muletas, uma
burguesa e outra popular, verificamos que toda a confusão política, as
arbitrariedades, os atropelos, os abusos e as tiranias podem encontrar a sua
via para se instalarem, através do mau uso das palavras.
Uma das palavras novas lançadas no mercado
político do nosso país, na era recente, foi a “descentralização”. Todo o país riu
quando o I Governo Constitucional disse estar praticando uma política de descentralização
só porque foi um dia reunir-se no Porto.
….
Em Portugal não existe poder local.
Desenganem-se os ingénuos. Só há poder partidário. …Quem manda é o Governo.
Mas o som mágico da palavra “descentralização”
ainda não se gastou.
….
Para já o poder das autarquias é
partidário, vive de subsídios do poder central e está amarrado às decisões do
mesmo poder.
…
Porque esse o plano global é permitido com
tal força, com tal vontade, com tal exactidão que qualquer fissura, a mais
ténue veleidade de liberdade local, desfeará o edifício. Ele é uma construção
total. Não admite construçõezinhas à vontade do habitante… Essa liberdade já
não se usa. Hoje a tecnocracia e o socialismo, de mãos dadas, vão-nos dar um
país muito arrumadinho…
Entretanto continuaremos no engodo e no
engano de “descentralização”. E esta palavra tão promissora de liberdade
autêntica continuará a ser desvirtuada. Já o é de tal modo no Programa do II
Governo que nele se usa quase indistintamente a descentralização e
desconcentração… Como se fossem exactamente a mesma coisa.
E a memória colectiva da nossa antiga
liberdade municipal acabará por se desvanecer pois a própria palavra que a
definia se vai extinguindo por uso indevido. Daqui a pouco tempo estaremos
todos fartos de “descentralização”. E com inteira razão. O que não saberemos
mais chamar pelo nome próprio aquilo que ela significava. E isso será uma perda
irreparável.
Teresa Maria Martins de Carvalho in Jornal
Novo 12/7/78 (incluído in D. Sebastião e Eu – 1982)